Projeto de Vida: Promessa da educação socioemocional ainda encontra obstáculos para revigorar-se no cenário nacional
A disciplina de projeto de vida, consolidada há 2 anos atrás juntamente com o Novo Ensino Médio, apresenta contratempos, que envolvem a legislação limitada e os valores questionáveis do empreendedorismo contemporâneo, para consolidar a realidade da educação socioemocional no Brasil
No ano de 2017 a lei nº 13.415 entrou em vigor com o intuito de propor alterações na propositura legal de ‘Diretrizes e Bases da Educação Nacional’, responsável por organizar a estrutura do ensino médio brasileiro. Entre essas mudanças da educação básica, que só foram efetivamente consolidadas no ano de 2022, destaca-se: ampliação da carga horária escolar para 1.000 horas anuais, oferta de itinerários formativos, conjunto de disciplinas que dão foco nas áreas de conhecimento e na formação técnica e profissional que seja de interesse do estudante, e implementação de uma nova disciplina conhecida como ‘Projeto de Vida’. Conforme a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que prevê os conteúdos e habilidades que devem ser desenvolvidas no ambiente escolar, a disciplina de projeto de vida, que se tornou obrigatória no currículo do ensino médio brasileiro, possui como principal objetivo fazer com que os alunos possam refletir acerca de suas identidades e seus futuros papéis como adultos na sociedade atual, o que consolida o panorama de uma educação socioemocional. O projeto de vida também objetiva a construção da autonomia dos estudantes a respeito de suas futuras escolhas. Para isso, a disciplina é estruturada em três pilares: social (refletir sobre a realidade de cada aluno, considerando a relação estabelecida com amigos e familiares); pessoal (compreender as emoções, anseios, limites de cada estudantes); e profissional (estabelecer os rumos profissionais e acadêmicos).
A psicóloga clínica da abordagem centrada na pessoa (ACP) Isabela Maciel diz que os jovens do ensino médio, que estão prestes a ingressar na vida adulta, enfrentam grandes pressões externas e internas: “A adolescência é uma fase marcada por intensas mudanças físicas, emocionais e sociais. Nesse momento, questões como a busca por identidade, a necessidade de pertencimento e o desenvolvimento da autonomia se tornam questões centrais. Muitos adolescentes enfrentam dúvidas individuais relacionadas a quem são, o que desejam para o futuro e como se posicionar diante das expectativas ao seu redor. Além disso, as pressões sociais e familiares desempenham um papel significativo. As cobranças para definir uma identidade profissional ou pessoal podem gerar insegurança, medo de falhar ou até mesmo confusão sobre qual caminho seguir. Cada adolescente vivencia esse processo de forma única e no seu próprio tempo. O suporte emocional, seja na família, na escola ou por psicoterapia é essencial para que o adolescente se sinta seguro para explorar suas possibilidades, compreender suas dúvidas e tomar decisões alinhadas com seus valores e interesses. Acolher, ouvir e validar suas experiências faz toda a diferença nesse período de tantas mudanças e desafios.” A psicóloga, considerando a perspectiva do ensino socioemocional, afirma que a disciplina de projeto de vida pode sanar as demandas psicoafetivas que permeiam a vivência dos estudantes do ensino médio, desde que haja um diálogo efetivo e empático: “A disciplina de projeto de vida nas escolas pode ser uma ferramenta muito eficaz
para ajudar os adolescentes a lidarem com as questões psicológicas tão comuns nessa fase. Esse espaço permite que os jovens reflitam sobre seus sonhos, objetivos e valores, promovendo autoconhecimento e planejamento de forma prática e significativa. Mas, é preciso estabelecer um diálogo que seja verdadeiramente transformador, acolhedor e livre de julgamentos. É importante que o adolescente sinta suas dúvidas, medos e expectativas são respeitadas. O educador deve ter o papel de guiar, e não de impor respostas prontas. O diálogo deve também abordar temáticas fundamentais como o autoconhecimento, o que incentiva os adolescentes a refletirem sobre suas habilidades, interesses e valores. É essencial discutir como as cobranças sociais e familiares podem influenciar suas escolhas. Mais do que resolver as questões psicológicas, a disciplina de projeto de vida deve funcionar como um apoio, ajudando os jovens a entenderem que a construção do futuro é um processo contínuo, que pode ser vivido com consciência, equilíbrio e esperança.”
Isabela Luise, estudante do ‘Colégio Agostiniano’, diz que já convive com a disciplina antes mesmo de ter ingressado no ensino médio. Ao ser questionada a respeito de sua avaliação pessoal sobre o projeto de vida, Isabela demonstra um sentimento de aprovação: “A disciplina de projeto de vida, por meio do autoconhecimento, me permite entender minhas vontades, dúvidas, qualidades e defeitos e perceber as diversas áreas do conhecimento que me identifico, nas quais eu posso me aperfeiçoar. Me sinto mais confiante para o meu futuro em relação ao meio profissional, porque a disciplina abrange diversas questões para nos fazer refletir a respeito do mundo atual e do mundo futuro de modo que eu venha me relacionar da melhor forma com a incerteza do que ainda está por vir. Em relação ao meu pessoal também me sinto confiante, agora me vejo como uma pessoa com o emocional mais amadurecido.”
Embora a disciplina tenha certo destaque na proposta do ‘Novo Ensino Médio’ e apresente, á princípio, um panorama positivo para a educação nacional, o projeto de vida ainda se depara com barreiras para que consiga suprir as expectativas da implantação do desenvolvimento socioemocional no corpo escolar do país. Um desses contratempos é a legislação que constitui o Projeto de Vida, que é escassa em detalhes. A nova configuração da Lei de ‘Diretrizes e Bases da Educação Nacional’ não estipula carga horária mínima em torno da disciplina, não determina o perfil adequado do educador para ministrar as aulas de projeto de vida, e não especifica a forma de avaliação, que fica a cargo de cada instituição decidir se o novo componente valerá nota no boletim ou não. A professora de projeto de vida no ‘Colégio Arena’ Nathalia de Freitas conta que se sentiu bastante desafiada quando foi designada para ministrar a disciplina. Ela também expõe que a sua preparação foi indispensável para se inserir no contexto da disciplina: “Quando fui designada para ser professora de projeto de vida confesso que me senti bastante desafiada. Porque é uma disciplina ainda muito nova nas escolas. As escolas há pouco tempo vêm implementando as habilidades socioemocionais que, no ensino médio, é aplicada pelo projeto de vida. Mas, eu tive uma preparação, tive um aporte teórico. Estudei a BNCC, tive uma formação orientada e acompanhada pela equipe de psicologia do Colégio Arena, e nessa especialização eu entrei em contato com o material que eu iria utilizar. Eu fui orientada sobre os pontos que eu deveria trabalhar, do que se tratava o projeto de vida. Entendi que ele também não é só pra pensar a vida profissional, pessoal e social. Ele também vem muito acompanhado de
dinâmicas, atividades e de interação entre os próprios alunos. É uma disciplina que fala muito em ter autonomia, é uma disciplina que faz uma crítica e análise sobre as outras disciplinas. Então, não cheguei a ter nenhum tipo de lacuna em relação ao conteúdo de
Projeto de Vida. Porém, foi um grande desafio que tive que encarar como profissional. Á princípio, sou professora de história, tenho formação em ciências humanas. Isso é até uma coisa legal do projeto de vida, que permite a atuação de profissionais da educação em diferentes áreas do conhecimento. A BNCC encara essa disciplina isso como uma formação essencial, que faz parte de uma formação integral dos estudantes. O projeto de vida vai envolver o desenvolvimento pessoal, e a construção de projetos individuais que o estudante deseje. Então, abordamos planejamento e valores éticos, culturais, sociais e emocionais. Além disso, a disciplina é desenvolvida de maneira integrada, para fazer com que os alunos compreendam a centralidade da disciplina, isso também é desafiador.”
Rafael Gargano, coordenador da disciplina de projeto de vida no ‘Colégio Arena’, expõe como as aulas são realizadas, de modo que os alunos possam ser contemplados da melhor forma possível mesmo sob o quadro legislativo da disciplina, que é pouco esclarecedor: “Para a construção da discussão em sala de aula, é designado uma série de conteúdos específicos que os estudantes devem ler previamente. Dessa forma, há um período de 10 a 15 minutos de apresentação de problemas que giram em torno de escolhas, decisões, responsabilidade, consciência crítica, e capacidade de perceber a si mesmo. Posteriormente, os alunos podem se manifestar do modo como quiserem. Eles podem expor seus pontos de vista sobre as questões abordada em aula. Muitos acabam se abrindo de maneira muito íntima e pessoal, o que requer um certo cuidado porque, mesmo que a disciplina seja socioemocional, ela não se configura em uma terapia coletiva. Mas, trata-se de fazer com que o aluno possa discutir assuntos que muita das vezes ele não para refletir. O processo educacional do Brasil encontra-se muito voltado a resultados, e pouco focado na individualidade do aluno. Então, criar um espaço para que ele possa falar e expressar aquilo que está vivendo é um ganho fundamental nessa disciplina.”
Outra questão que pode ser dificultosa para o pleno desempenho educacional do projeto de vida é a forte carga da cultura empreendedora, que constitui grande parte do cerne da disciplina. Um artigo intitulado como “Reforma do Ensino Médio e Projetos de vida: Nada de novo no Front”, que foi escrito por Teodoro Adriano Costa Zanardi, Júlia de Moura Martins Guimarães e Wanderson de Sousa Cleres, apresenta um posicionamento crítico sobre o projeto de vida. As pesquisas acadêmicas presentes neste artigo apontam os prejuízos dos valores do empreendedorismo na disciplina, que seriam responsáveis por mascarar o atual cenário de precarização do trabalho e minimizar as discussões emocionais tão necessárias na formação dos estudantes. “De fato, se analisarmos a maioria dos projetos de socio-educação nas escolas do Brasil, perceberemos um viés muito voltado ao empreendedorismo. Contudo, o material utilizado aqui na escola não possui o empreendedorismo como tônica. Nós tentamos articular a dimensão da reflexão filosófica, sociológica, pisco-analítica e crítica sobre o indivíduo com as questões vinculadas ao mercado de trabalho. Mas, a preparação socioemocional dos estudantes não se restringe ao empreendedorismo. Tenho receio quando me deparo com certos materiais de apoio que tentam moldar o indivíduo exclusivamente para o mercado de trabalho. Considero que uma educação socioemocional
que restringe seu alcance para o mercado de trabalho é empobrecedora. O projeto de vida deve conseguir pensar no indivíduo para aquilo que é do âmbito profissional.”, diz Rafael.
A professora Nathalia afirma que é possível estabelecer um diálogo crítico com estudantes através do projeto de vida sem que a via do empreendedorismo atrapalhe: “É importante que o projeto de vida seja sempre acompanhado com uma análise crítica. É preciso fazer com que os estudantes analisem as nuances daquilo que desejam, avaliar as consequências de suas decisões na vida como um todo. Vale ressaltar que a vida não só deve ser analisada pela dimensão profissional. Assim, é importante também que o professor saiba mediar tudo isso, permitindo com que o estudante explore todas as suas potencialidades.”
Por Arthur Gabriel
Reportagem produzida para a disciplina 'Produção de texto jornalístico II' sob a supervisão da professora Mariza Fernandes.
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