Influenciando a perda: a CPI das Bets e as faces do engano
Por: Fernanda Aguiar
Ao longo do ano de 2024 palavras como: “apostas online”, “bets” e “jogo do tigrinho” não saíam das matérias de jornal, das redes sociais e da boca de influenciadores e famosos. É relevante questionar que, em especial dos ditos influenciadores, esperava-se uma disseminação de ideias e ações que influenciassem positivamente a vida de seus seguidores. Entretanto, muitos desses indivíduos que ganharam fama nas redes fazem propagandas de ações que definitivamente prejudicam seu público, como é o caso das publicidades para casas de apostas e os jogos de azar (como o jogo Fortune Tiger, conhecido como “jogo do tigrinho”).
Para contextualizar, é importante compreender alguns pontos desse mundo das apostas online no país. Existe uma diferença entre as bets e os jogos de azar. As bets são apostas realizadas em plataformas online de jogos e esportes, sendo que essas foram liberadas no Brasil a partir da aprovação da lei nº 13.756, de 2018, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente, Michel Temer. Essa lei instituiu uma nova modalidade lotérica denominada "Aposta de Quota Fixa - AQF", – popularmente conhecida como apostas esportivas.
Já os jogos de azar, como por exemplo, o famoso “jogo do tigrinho”, que também é online, são aqueles em que o jogador não entende a dinâmica que o faz ganhar ou perder, fazendo-o acreditar que os resultados dependem da “sorte”, sendo que, na verdade, esses são manipulados. Esse tipo de jogo continua ilegal no país. Quero esclarecer que essa não é uma defesa às bets em detrimento dos jogos de azar. Pelo contrário, ambos são extremamente problemáticos e a legalização das bets não as tornam boas e confiáveis para o público, visto que elas são determinantes em muitos casos de vício em apostas.
E falando em apostas, essas têm se tornado inerentes à população brasileira. De acordo com uma avaliação realizada pela PwC Strategy& do Brasil Consultoria Empresarial Ltda, ligada à multinacional de auditoria e assessoria PricewaterhouseCoopers, de 2018 até 2023 os gastos com apostas aumentaram 419% no país. E ainda temos outros agravantes. Segundo a mesma pesquisa, em 2018, as classes D e E tiveram um gasto do orçamento familiar de, aproximadamente, 0,27% com apostas. Em 2023, esse percentual passou para 1,98% do orçamento. Tal aumento foi oriundo da retirada de 76% do que seria gasto por elas com cultura e lazer e, ainda pior do que isso: 5% do valor que seria para despesas com alimentação também está sendo direcionado para apostas.
A condição é um problema que atinge grandemente a sociedade brasileira, especialmente por tangenciar uma fragilidade de uma grande parcela do nosso povo: a falta de recursos financeiros e o vislumbre de tentar melhorar suas condições de vida com essas opções “milagrosas”. Apesar disso, há aqueles que acreditam que joga quem quer ou até que “você aposta pra cair na conta e não passar da conta”, como dito por Cauã Reymond em uma propaganda para o site de apostas “bateubet”.
Essas falas buscam empurrar a responsabilidade de apostar apenas no jogador, o qual, muitas vezes, está em situação de vulnerabilidade social e é influenciado por pessoas como esses famosos, que prometem de tudo e mais um pouco. Esse público, que fora ludibriado, enxerga essa possibilidade como algo totalmente plausível para gerar dinheiro, já que os influenciadores passam a ideia de que eles também apostam. Essa responsabilidade seria então realmente apenas de quem joga? Acredito que não.
Outra questão é que o comprometimento de renda com as apostas online traz o risco para o desenvolvimento da condição de superendividamento, que é quando o indivíduo não consegue arcar com suas despesas básicas para sobrevivência devido ao acúmulo de dívidas que ele não consegue pagar. De acordo com a pesquisa da CNDL e SPC Brasil de 2024, o endividamento se tornou realidade para 11% dos entrevistados que apostaram e tiveram a renda comprometida.
As apostas podem até ser vistas por alguns como fomentadoras da Economia e, de fato, elas movimentam o mercado. No entanto, além da discussão ética de como apostar afeta a vida do indivíduo que perde dinheiro e se vicia no jogo, os dados do Banco Central mostraram que apenas em agosto de 2024, 5 milhões de beneficiários do programa Bolsa Família gastaram 3 bilhões de reais em apostas online. Assim, em resumo, toda essa verba governamental, proveniente dos impostos dos trabalhadores brasileiros e destinada a esse tipo de programa, tem sido abocanhada pelas grandes empresas de aposta e por seus influenciadores parceiros a partir do convencimento de uma grande parcela social de que as apostas seriam uma boa forma de obtenção de lucro. Uma população endividada é cada vez mais fragilizada em diversos aspectos: físico, psicológico, educacional, financeiro e, tudo isso demanda ainda mais recursos públicos para curar esse adoecimento…
Percebe-se então que a crescente ascensão de ambos os tipos de apostas tem sido fomentada e a classe dos influenciadores digitais tem culpa no cartório. Em um breve apanhado, desde 2023, dezenas de influencers têm sido expostos por divulgarem apostas online, como Virgínia Fonseca e Carlinhos Maia. Em setembro de 2024 tivemos a polêmica prisão da advogada Deolane Bezerra e o decreto de prisão do cantor Gusttavo Lima. Em novembro de 2024, o Senado Federal instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a atuação das bets no Brasil.
A denominada CPI das Bets tem como objetivo investigar a influência dos jogos virtuais de apostas online no orçamento das famílias brasileiras, além de uma possível associação com organizações criminosas em práticas de lavagem de dinheiro e uso de influenciadores digitais famosos para promover essas atividades. A decisão mais recente da CPI foi a convocação de Virgínia Fonseca e Rico Melquíades para prestarem depoimento na próxima terça-feira (13/05). Fica então o questionamento sobre o que o poder público fará com esses indivíduos. Contudo, a ideia de uma punição severa parece muito remota…
É preciso que haja um despertar, um movimento a partir de instituições como as universidades, a mídia e órgãos públicos, que fomente essa conscientização acerca de um problema tão grave como tem se configurado o vício em apostas e o endividamento da população. É preciso pressionar o governo a regulamentar essas apostas. Punições verdadeiramente rigorosas contra a veiculação de publicidade, especialmente com influenciadores e famosos, seria um passo essencial. Mas, novamente, persiste a dúvida se em um país como o Brasil, com seu histórico de impunidade, isso aconteceria.
Em meio a todos esses acontecimentos, é curioso pensar em quem esses famosos que divulgam apostas eram antes da fama. Deolane Bezerra, por exemplo, já afirmou ter vivido uma infância humilde, criada apenas pela mãe, além de que, ela e sua família se mudaram para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Gusttavo Lima, – ou Nivaldo Batista, seu verdadeiro nome – o “embaixador”, fenômeno do sertanejo, nasceu no interior de Minas e afirma ter vivido uma vida humilde. Trabalhou em lavouras, morou em casa de pau a pique e passou por diversas dificuldades financeiras até alcançar a fama. Virgínia Fonseca, uma das maiores influencers digitais do país, cresceu sendo integrante da classe média e vivendo sob condições financeiras bem distantes do seu atual padrão de vida milionário.
Essas informações escancararam que os ricos, no processo de acúmulo do capital, fomentam o sistema que engana e explora os trabalhadores gerando ainda mais pobreza. Como dito, muitos desses grandes influenciadores já fizeram parte dessa mesma classe trabalhadora, já viveram no limite, tentando de tudo para arranjar algum dinheiro extra e conseguir pagar todas as contas ou até mesmo para ter acesso a um item que sempre quis, mas nunca pôde adquirir. Mesmo assim, esses antigos explorados, atuais detentores de grande influência sobre seus públicos, continuam a enganá-los. E isso persiste porque não existe tristeza se o pobre fica mais pobre. Existe choro se os ricos não ficam mais ricos.
A exploração do trabalhador é normalizada, o indivíduo sem o devido conhecimento acerca de um assunto – como é o caso das apostas – é, de fato, influenciado e gasta suas “fichas” no sonho da ascensão econômica, em uma esperança de alcançar uma condição financeira que lhe permita acessar aquilo que é determinado como muito distante para pessoas como ele. E como bem fora representado na popular canção do grupo As Meninas, sucesso no início dos anos 2000, “o rico cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre / E o motivo todo mundo já conhece é que o de cima sobe e o de baixo desce”. Para que alguns subam, outros precisam descer. É preciso que muitos percam para que poucos ganhem. E, logicamente, no sistema socioeconômico em que vivemos é sempre um: “antes ele do que eu!”.
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