O preço da cruz: por que o Brasil precisa rever sua laicidade
Por: Ricardo Lima
O Brasil se define constitucionalmente como um Estado laico, mas, na prática, ainda sustenta estruturas simbólicas e institucionais que privilegiam majoritariamente o cristianismo. Ao manter feriados exclusivamente cristãos como nacionais, exibir crucifixos em tribunais e órgãos públicos e naturalizar referências religiosas em sua administração, o país não apenas fere o princípio da laicidade — fere, também sua diversidade. Num cenário multiétnico e multirreligioso como o brasileiro, negligenciar os limites entre fé e poder pode custar caro. Em vez de harmonia, sem a devida regulação secular, o que se fortalece é o risco de fundamentalismo.
Feriados como o Natal e a Sexta-Feira Santa são comemorados nacionalmente, enquanto datas importantes para outras religiões — como o Ano Novo Judaico ou o Dia de Oxalá — sequer são reconhecidas localmente. Isso configura uma preferência simbólica institucional por uma religião específica. Mais grave ainda é a manutenção de cruzes e imagens cristãs em escolas, fóruns e prédios do Executivo. Esses símbolos, longe de serem neutros, reforçam a ideia de que o Estado tem um viés espiritual — e isso contradiz diretamente o artigo 19 da Constituição Federal.
Se a questão fosse apenas simbólica já haveria motivo para preocupação. Mas os efeitos são concretos. De acordo com dados divulgados pelo Disque 100, canal oficial de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), em 2024 foram registradas 2.472 denúncias de intolerância religiosa, que resultaram na constatação de 3.853 violações à liberdade de crença — um aumento de 81% em relação às 2.128 violações registradas em 2023. A maior parte dessas violações foi contra praticantes de religiões de matriz africana, refletindo um padrão alarmante de perseguição.
No Rio de Janeiro, o cenário é ainda mais alarmante, pois a facção criminosa Terceiro Comando Puro, influenciada por uma vertente pentecostal radicalizada, tem perseguido e atacado terreiros, expulsando praticantes de suas comunidades. A omissão do Estado, que se mantém ambíguo ao reafirmar símbolos religiosos em instituições públicas, enfraquece sua capacidade de proteger essas minorias. Quando a imparcialidade é abandonada, a perseguição encontra respaldo silencioso.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que validou por unanimidade a presença de símbolos religiosos em prédios públicos sob o argumento de representarem a tradição cultural brasileira, coloca em questão a laicidade do estado. A interpretação do STF ignora a diversidade religiosa do país e perpetua a hegemonia do cristianismo nas instituições públicas. Ao permitir apenas símbolos católicos, como crucifixos, o STF reforça uma preferência religiosa institucionalizada, o que contraria o princípio constitucional de separação entre Estado e religião.
Essa decisão não apenas marginaliza outras crenças, especialmente as religiões de matriz africana que são frequentemente alvo de intolerância, mas também compromete a imparcialidade esperada das instituições públicas. Ao manter símbolos de uma única igreja cristã, o Estado envia uma mensagem de exclusão às demais comunidades religiosas — inclusive protestantes — enfraquecendo o compromisso com a igualdade e a diversidade.
A defesa da laicidade não é uma cruzada contra a fé, mas um escudo de proteção à diversidade. Manter o Estado laico é garantir que todas as religiões — ou a ausência delas — possam coexistir em igualdade de condições. O Brasil precisa urgentemente rever sua simbologia institucional, equilibrar o calendário de feriados e proteger juridicamente as minorias religiosas com mais firmeza. Mais que uma formalidade constitucional, o laicismo é um pilar civilizatório após a Paz de Vestfália. E ignorá-lo, em nome da tradição ou do respaldo da maioria, é um passo em direção ao retrocesso.
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