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Goiás, a farsa do Estado mais seguro: contradição dos números

A tranquilidade proclamada é seletiva e esconde falhas sistêmicas em áreas onde a estratégia de segurança não tem surtido efeito, especialmente na proteção das mulheres e na gestão da crise de desaparecimentos.

Por Anna Salgado

Anunciado com o peito cheio e voz alta pelo governo de Goiás, o Estado é considerado o mais seguro de todo país, entretanto, essa celebração esconde profundas fissuras e uma estratégia controversa que transfere a responsabilidade de manter a ordem do poder público para a iniciativa privada e para a própria população.

Os dados são inegavelmente robustos e servem de lastro para o orgulho goiano. Nos últimos seis anos, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes caiu 52,1%, posicionando Goiás abaixo da média nacional: 18,8 mortes por 100 mil habitantes contra 20,8 em 2024. Essa política de segurança preservou pelo menos 5 mil vidas no período, e a capital, Goiânia, ocupa a 5ª posição entre as capitais mais seguras do Brasil. O vice-governador Daniel Vilela destacou que o sucesso permitiu que Goiás passasse a ter o seguro de carro mais barato do país em cinco anos e atraiu investimentos por ser um lugar seguro. Crimes contra o patrimônio despencaram: roubos a transeuntes caíram 92%, roubos de cargas recuaram 98%, e latrocínios (roubo seguido de morte) tiveram uma queda de 95% no primeiro semestre de 2025 em comparação com 2018.

Contudo, a tranquilidade proclamada é seletiva e esconde falhas sistêmicas em áreas onde a estratégia de segurança não tem surtido efeito, especialmente na proteção das mulheres e na gestão da crise de desaparecimentos.

Feminicídio: A persistente falha sistêmica

Apesar da redução geral de roubos e homicídios em 2024, o crime de feminicídio se manteve inaceitavelmente estável, registrando 56 casos tanto em 2024 quanto em 2023 e se trata de uma das falhas sistêmicas, visto que mulheres continuam morrendo.

Essa falha é ainda mais crítica se observarmos o crescimento dos indicadores antecedentes de violência:

  • Tentativas de feminicídio cresceram 10% entre 2023 (170) e 2024 (187).
  • Violência psicológica atingiu 3 mil casos, um avanço de 7,1%.
  • Tentativas de homicídios de mulheres também tiveram um aumento de 1,5%.

Ao comentar a ausência de diminuição do feminicídio, o governador Ronaldo Caiado (UNIÃO) afirmou que isso não pode ser atribuído somente a uma falha na segurança pública, mas sim a uma "série de fatores externos", incluindo a falta de apoio social às vítimas de violência. No entanto, os dados mostram que em 97% dos feminicídios com autoria conhecida, os autores eram homens, geralmente companheiros ou ex-companheiros.

Desaparecimentos: A violência ocultada

Se a redução de crimes violentos garante manchetes positivas, o aumento exponencial de desaparecimentos adiciona uma sombra perigosa à imagem do estado mais seguro. Em 2024, Goiás registrou 3,7 mil pessoas com paradeiro desconhecido, o que equivale a dez pessoas desaparecidas por dia. Esse quantitativo representa um aumento de 7,4% em relação a 2023.

A taxa de desaparecidos em Goiás (51,5 casos por 100 mil habitantes) é significativamente superior à taxa nacional (38,5). O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, inclusive, levanta a hipótese de que, em estados que registraram grande redução de mortes violentas, parte dessa violência pode estar sendo "ocultada sob a forma de desaparecimentos".

Além disso, a ineficiência do Estado na gestão desse problema é manifesta, existe a falta de dados devido ao fato de o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas ainda não estar em operação. Essa ausência de informações impede o desenvolvimento de políticas públicas eficazes e de um suporte intersetorial, deixando as famílias "na mão" e dependentes de recursos próprios sem o acompanhamento de um Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que seria o ideal.

A 'Terceirização' da segurança por meio da restrição ao comércio

O aspecto mais evidente da crítica à gestão da segurança em Goiás reside na preferência por restrições ao convívio social e à atividade econômica em detrimento do aumento direto do policiamento ostensivo e de inteligência nas áreas de risco.

O principal exemplo é a lei sancionada em Goiânia que limita o horário de funcionamento das distribuidoras de bebidas até as 23h59, proibindo mesas e consumo no local, e permitindo vendas apenas por delivery após esse horário.

A justificativa para a medida é impactante: de acordo com o Comando de Policiamento da Capital (CPC) e o vereador Novandir (MDB), mais de 40% dos homicídios registrados em Goiânia entre janeiro e abril de 2024, chegando a 44% em maio, ocorreram dentro ou próximos a distribuidoras de bebidas.

Entretanto, ao invés de aumentar a segurança pública nesses locais, o Estado opta por punir o comércio e limitar o direito de consumo. Se o problema é o índice de criminalidade, a resposta do poder público deveria ser clara: o aumento da segurança pública, em vez de fechar os estabelecimentos.

A imposição de limites de horário e atividade (como também ocorreu com o fechamento diário do Bosque dos Buritis após as 22h, buscando reduzir a incidência de ocorrências no período noturno), configura uma transferência de responsabilidade: o Estado evita o alto custo de patrulhamento noturno e de inteligência, forçando a população e os comerciantes a se retirarem dos espaços públicos ou a encerrarem suas atividades mais cedo, artificialmente "reduzindo" as estatísticas de ocorrência em certas áreas.

Em suma, a posição de Goiás como "Estado mais seguro" é uma façanha numérica. Mas essa vitória estatística é conquistada com o custo de invisibilidade para vítimas de violência de gênero e para as famílias de milhares de desaparecidos, e com a penalização dos cidadãos e comerciantes que, por meio de restrições, são compelidos a fazer o trabalho que caberia ao investimento maciço e inteligente em segurança pública.

Reportagem produzida para a disciplina "Produção de texto jornalístico III" sob a supervisão da professora Erica Neves.

类别: Opinião Violência