Realmente, a Nova CalifórnIA
Mais de um século após “A Nova Califórnia”, de Lima Barreto, a corrida pelo ouro continua, agora digital. Assim como os moradores de Tubiacanga, sacrificamos nossa humanidade em busca do brilho fácil do progresso, trocando ossos por algoritmos.
Por: Victor Hugo Gomes
Há 105 anos, um autor sem muito prestígio, posses ou premência na cena literária brasileira do início do século passado lançava um conto, “A Nova Califórnia”. A história conta a saga de um desconhecido, Raimundo Flamel, que chega à pacata vila de Tubiacanga. O soturno e circunspecto forasteiro causa alvoroço nos moradores pela sua vida misteriosamente isolada. O texto (alerta de spoiler centenário) revela que Raimundo é um alquimista chegado ao lugarejo para conduzir em paz seus disruptivos experimentos de transformar ossos em ouro. Depois do rechaço inicial pela atrocidade da ciência, os moradores embarcam numa desvairada corrida para vilipendiar túmulos e fazer outras atrocidades em nome do vil metal.
O conto foi escrito por Lima Barreto. Um homem cuja história pessoal é uma saga própria. Negro, fora da elite carioca, alcoólatra e com falhas no rigor literário neoclássico, o autor foi impedido de integrar a Academia Brasileira de Letras – ironicamente fundada por um homem negro, Machado de Assim – pelo racismo e pro elitismo demandos pelos “imortais”. As obras antológicas de Lima Barreto, como “Bruzundangas”, “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” e até esse conto em questão, foram escanteadas por falhas na coesão gramatical e literária da obra. Personagens mudavam de nome, de grafia, de lugar e havia colocações pronominais erradas. Porém, a genialidade dos textos de Barreto está na vivência da áspera vida dos relegados da pátria-mãe, às vezes, gentil. A percepção crítica e satírica de Lima Barreto alcança algo que nenhuma gramática ou manual literário jamais alcançará: a autenticidade.
“A Nova Califórnia” é transcendental por romper com o ufanismo dos Indianistas e com a pieguice dos Ultra-românticos. Lima Barreto reflete sobre a hipocrisia social tantas vezes apontada em políticos, mas permeada em todos nós. A mera possibilidade de atingir a “prosperidade” bastou para a falsa moral cair. No conto, quem faz atrocidades não são apenas os representantes políticos de Tubiacanga, são os pais e mães de família, o carteiro, açougueiro e os vigilantes que se dispuseram a “proteger os defuntos”. Quem faz tudo para conseguir seu punhado de outro sou eu e você. O autor conseguiu enxergar bem mais além das platitudes já ditas. O título já mostra que apontar o dedo aos erros dos outros é um lugar-comum. A corrida do ouro na Califórnia foi uma tragédia humana ao dizimar indígenas, expôr trabalhadores a riscos insalubres e promover guerras na Marcha ao Oeste. E as nossas próprias tragédias?
É interessante o microcosmos de Tubiacanga: um lugarzinho pacato dizimado por uma inovação tecnológica. 105 anos depois, o mundo inteiro é uma Tubiacanga. A revolução da Inteligência Artificial (IA) é inegavelmente disruptiva para produzir avanços, mas a que preço? Nesta sexta-feira (7), o The Guardian revelou que o Google já está construindo um enorme centro de IA nas Ilhas Natal. O arquipélago de só 135 km² é considerado a “Galápagos do Oceano Índico”. Porém, o refúgio quase intocado agora é visto como um ponto central em rotas de infraestrutura crítica, tanto tecnológica quanto militar. Para atingir o “avanço”, mais uma vez a humanidade vai sacrificar a própria humanidade.
Lima Barreto representou o desespero pelo progresso pecuniário como “parricídio”, ou seja assassinato de irmãos; contudo, hoje, é ainda pior. Trata-se de um suicídio teleguiado. Para deixar alguns bilionários ainda mais bilionários, a humanidade simplesmente assimilou passivamente toda nova demanda por “produtividade”. Funcionamos como empresas com metas, buscando reduzir prazos e custos… a troco de quê? A obra de Lima Barreto, mais de um século depois, é uma leitura válida porque reflete sobre problemas patentes atualmente. O literato não conseguiu sua cadeira de “imortal” na Academia Brasileira de Letras, mas nem por isso sua bibliografia deixou de estar imortalizada na cultura brasileira pela potência da verdade que escreve. 105 anos depois, a Nova Califórnia é a CalifórnIA do silício que retira a humanidade dos próprios seres humanos, retira tempo para família, lazer e o ócio em nome de promessas de pepitas de ouro. Resta saber quantos cadáveres serão vilipendiados em nome dessa El Dorado.
Matéria produzida para a disciplina de Produção de Texto Jornalístico II, ministrada pela professora Érica Morais.
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