
Gosto que se discute
Escrito por: Alaor Rocha
Reportagem produzida para a disciplina "Produção de texto jornalístico II" sob a supervisão da professora Mariza Fernandes.
Como a inclusão de pessoas com seletividade alimentar vem se tornando pauta dentro de escolas, empresas e assembleias legislativas

Quando a estudante Bárbara Soares, 19, viajou para São Paulo e se deparou com a Avenida Paulista à sua frente, fez o que, nas palavras dela, todo goiano pensa em fazer: ir ao Starbucks. Entrou na cafeteria ao lado do Parque Trianon e, já que não é de tomar café, procurou o que consumir no local. “Tinha um donut”, ela conta, “e eu pensei o quê? Massa e chocolate. Não é uma coisa muito distante das coisas que eu como.” Comprou o doce e olhou para ele em suas mãos, sem conseguir dar a primeira mordida. “Aí, quando peguei um pedacinho do chocolate, eu comecei a chorar e falei assim: ‘Pronto, não consigo comer um donut.’”
O episódio no Starbucks é apenas um em uma série de situações em que a seletividade alimentar de Bárbara impactou sua vida. A condição, definida pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) como a “recusa ou predileção por cores, cheiros, sabores, texturas e consistências específicas”, é comum em pessoas no Transtorno do Espectro Autista (TEA) e outras neurodivergências — Bárbara, por exemplo, foi diagnosticada em 2023 com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). No entanto, ela não está restrita a este público: ainda segundo a SBP, a dificuldade atinge entre 25 e 40% de todas as crianças, podendo ou não desaparecer à medida em que envelhecem.
Direito à alimentação
A seletividade alimentar vem ganhando espaço após casos como o do Instituto de Educação Gastão Guimarães, em Feira de Santana (BA), que teve sua diretora afastada em agosto deste ano após um aluno com autismo ser impedido de levar seu próprio lanche, ou por meio das redes sociais, como nos vídeos do influenciador goiano Bomtalvão, que explora sua condição experimentando alimentos diferentes em seu perfil no TikTok.
O alcance do assunto vem motivando ações dos mais diferentes setores da sociedade para que as pessoas que vivem com seletividade alimentar não se sintam (ou mesmo sejam) excluídas nos ambientes que frequentam. “A gente tem sempre uma postura de diálogo com as pautas que vão chegando aqui, de grupos sociais organizados”, relata Emília Silva, da assessoria da deputada estadual Marina do MST (PT-RJ). A parlamentar foi responsável pelo Projeto de Lei 1379/2023, aprovado este ano, que inclui o porte de alimentos e bebidas para consumo próprio na Política Estadual de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Breno Rodrigues, que também faz parte da assessoria de Marina, ressalta como o tema foi parte das eleições de 2024, “ora de forma muito oportunista, a gente sabe, mas ora de forma muito coerente, correta, responsável.”

Ambos apontaram como lidar com a seletividade alimentar de forma pública é, também, garantir o direito humano à alimentação, algo que está sob o guarda-chuva do mandato da petista. “Havia mulheres em situação de vulnerabilidade nas reuniões sobre o assunto”, conta Breno, “e [elas contavam que] às vezes não tinham condições de comprar nesses espaços, quando não conseguiam entrar com alimentos para seus filhos, quando era proibido e tudo mais. Então tinha essa dificuldade de acesso ao alimento por conta da questão econômica.”
Além do PL de Marina, outros projetos transitam por assembleias legislativas ao redor do país com o objetivo de incluir políticas públicas que tratem sobre a seletividade alimentar. Alguns exemplos são o PL 245/2024, de autoria de Dani Alonso (PL-SP), o PL 250/2024, de Sergio Peres (Republicanos-RS), e o Projeto de Lei 1327/2023, proposto pelo deputado Joel da Harpa (PL-PE), embora todos também tenham como foco exclusivo a garantia dos direitos alimentares das pessoas no espectro autista.
Solução sob demanda
Quando uma dificuldade alimentar se torna uma questão para toda a sociedade, é fácil pensar que os próprios alimentos podem virar objeto de discussão — especialmente os industrializados, como é o caso da bebida Pirakids, da empresa goiana Piracanjuba. Em 2022, a marca recebeu dezenas de apelos de mães ao anunciarem que fariam um rebranding da embalagem do achocolatado, o que faria com que seus filhos com TEA não quisessem mais consumir o produto — um dos poucos alimentos que ingeriam.
Com o lançamento inevitável da embalagem repaginada, a Piracanjuba pensou em uma forma de acolher tais famílias: segundo um informativo publicado no site do próprio grupo, a equipe de Marketing desenvolveu uma espécie de “luva” do visual antigo do produto, “feita sob medida para a nova embalagem, que guarda o produto como se fosse o antigo Pirakids”. O acessório foi disponibilizado e enviado gratuitamente para todos que entraram em contato com a marca por meio do Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).

Uma das mães que receberam a “luva”, a amazonense Ana Paula Avelino, que cria um filho com seletividade alimentar, agradeceu a iniciativa em postagem no Instagram, ressaltando a empatia da empresa em um assunto que é muitas vezes visto como um problema exclusivo de quem lida diretamente com ele. “Devido [a] essa atitude de vcs”, escreveu, “percebi que nós mães especiais não estamos sozinhas e que existe, sim, seres com coração bondoso. Não devemos perder a esperança em dias melhores.”
“A Bárbara come? Não come”
Além das próprias pessoas que convivem com a condição, os relatos deixam claro como as mães são profundamente afetadas pelas provações, literais ou não, da seletividade alimentar. “Acaba que muitos homens acabam abandonando os seus filhos quando descobrem essa questão do autismo”, conta Breno, da assessoria de Marina do MST.
O pai de Bárbara não faz parte desse grupo, mas ela admite que sua mãe sempre foi mais próxima e compreensiva em relação à sua dificuldade. “Acho que foi mais difícil para ele entender que eu não comeria. Até hoje, de vez em quando, fica tipo assim”, e dá de ombros como quem vê algo incompreensível à frente. “Ele fala tipo ‘ai, mas tem comida lá’ e minha mãe vira e fala: ‘a Bárbara come? Não come."

Há 26 anos como professora concursada em Goiânia, Maria Márcia Soares admite que sua formação e atuação como pedagoga permitiu abordar a seletividade alimentar de sua filha com mais gentileza, mesmo quando ainda não sabia da existência da condição. “No início, quando as pessoas falavam assim, ‘ela só não come porque vocês dão outros alimentos; se vocês deixarem ela sem comer, ela vai querer comer’”, explica, “e eu não gostei dessa experiência [de deixar Bárbara sem comer], então eu entendi que não era por esse caminho. Se eu tivesse compreensão do que era a seletividade alimentar nessa época, eu teria buscado ajuda profissional, teria conduzido de uma forma diferente.”
Mesmo entendendo as limitações de Bárbara, Maria Márcia descobriu sobre a dificuldade apenas quando a filha já tinha 17 anos. “Eu me deparei com um vídeo produzido pela Secretaria Municipal de Educação, quando a mãe de uma criança autista estava falando, né, dessa dificuldade da criança dela de inserir vários alimentos [na dieta]”, conta. “E daí eu conversei pessoalmente com essa mãe e ela disse pra mim: ‘Quantos anos tem a sua filha?’ E eu disse que ela tinha 17. Ela virou pra mim e falou assim: ‘E ela sobreviveu a esses anos todos assim?’ E foi aí que caiu a minha ficha.”
Hoje, além de poder dar nome às limitações da filha (“Eu sempre tive o cuidado de ter em casa aqueles alimentos que ela come e, quando não tem, a gente pensar em nas alternativas possíveis”), a professora usa seu conhecimento sobre a seletividade alimentar no ambiente escolar, trabalhando com crianças no espectro autista. “Eu convivo com muitas crianças e eu oriento profissionais que trabalham com essas crianças”, relata, “e minha formação profissional me deu essa clareza de compreender que a criança não é obrigada a comer tudo, como a gente era. Na minha época, a gente tinha que comer mesmo não querendo, né? Era tudo imposto.”
Um prato cheio para discussões
Thatinelle Franciane, 30, convive com a seletividade alimentar de seu filho João Miguel e enfatiza as complicações em lidar com uma condição tão sensível: “O pessoal não entende muito bem o quanto ela afeta a vida das pessoas. A gente ainda deu sorte de o João Miguel ainda comer alguns alimentos bem saudáveis... mas a maioria não é.” Ela também lembra como uma dificuldade alimentar mal resolvida pode levar a comorbidades como sobrepeso e desnutrição, mencionando como a de seu filho, mesmo sendo reconhecida e tratada, já desencadeia “uma série de sensações físicas e psicológicas nele... é uma pedra no sapato no desenvolvimento de qualquer pessoa, seja ela criança ou adolescente.”
Mesmo a pessoa com seletividade alimentar ingerindo um cardápio muito restrito, é importante saber que ela não é sinônimo de distúrbio nutricional. Um ensaio publicado em 2005 pelo Grupo de Estudos em Nutrição e Atividade Física (GENAF), da Universidade de São Paulo (USP), esclarece que o acompanhamento feito por um nutricionista é capaz de “compatibilizar e respeitar o paladar de cada criança, sem descuidar-se das necessidades energética e nutricional”. Assim, ações como os projetos de lei e a iniciativa da Piracanjuba não visam permitir uma alimentação deficitária, mas sim assegurar que as pessoas possam garantir a própria nutrição de acordo com suas próprias realidades.
Bárbara, por sinal, já se certificou disso: “Minha psicóloga começou a cogitar que poderia ser o TARE, que é o Transtorno Alimentar Restritivo Evasivo, e aí já seria um transtorno alimentar. Só que, conversando com o psiquiatra, ele falou que seria um transtorno se estivesse prejudicando a questão dos nutrientes. Até hoje, graças a Deus, nunca prejudicou.”
Mesmo, como ela diz, sendo mais fácil dizer o que ela come em vez do que não come, a estudante sabe que está em dia com a própria saúde e que sua condição vem sendo cada vez mais discutida e até mesmo regulamentada a cada dia que passa. “O único problema”, conta, “acontece quando enjoa da comida. Gente, eu não como muita coisa, como que eu vou substituir isso agora?” Ela deixa a pergunta no ar, talvez pensando em futuros projetos de lei.
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